domingo, 23 de janeiro de 2011

Jornada

Eu estava sozinho em casa. Preferia assim.

Pedi a todos que me deixassem arrumar minhas coisas sozinho. Seria uma boa oportunidade para separar o que realmente me seria útil na viagem e o que poderia ser doado ou jogado fora. Na verdade, eu sabia que o processo de separar todas aquelas roupas e objetos me traria muitos pensamentos e, principalmente, lembranças. E era por causa disso que preferia estar sozinho.

Eu havia passado toda a minha infância naquela cidade. Conhecia a maior parte das pessoas que moravam perto da nossa casa, bem como era conhecido por todos os amigos dos meus pais. Na vizinhança, havia muitas crianças mais ou menos da mesma idade, então mesmo o percurso até a escola era feito na companhia de conhecidos. Evidentemente eu não tinha muitas amizades, mas me virava bem com relação a isso – embora a fama de esquisitão tenha me seguido durante alguns anos.

Engraçado lembrar o quanto isso me incomodava. Não conversava muito com eles, mas mesmo assim essa imagem que tinham de mim me desagradava. Hoje, anos depois, consigo perceber que não fez nenhuma diferença o que pensavam de mim.

Agora eu tenho um objetivo, e essa é mais uma razão para me tornar diferente da maioria. Desde que decidi fazer esta viagem, ouvi repetidas vezes sobre as dificuldades que encontraria pelo caminho, ou mesmo para sair do lugar. Talvez seja porque, por aqui, as pessoas estejam acostumadas a ficar: no mesmo lugar, com as mesmas ideias e os mesmos confortos. É inegável que seria muito mais fácil ficar aqui, onde tudo é conhecido, onde eu poderia ter um futuro absolutamente previsível.

Nesta cidade, após terminar o colégio você pode encontrar um emprego simples, desenvolver atividades simples durante todo o dia, voltar para casa à noite cansado, mas orgulhoso de suas contas pagas com o suor do seu trabalho. Quem sabe construir um patrimônio modesto, casar-se e ter filhos. Simples.

Eu pensava diferente. Queria conhecer lugares, pessoas, fatos... essa curiosidade, essa vontade de explorar sempre foi minha característica mais marcante, desde criança. Sabe aquele menino que adoraria saber como o brinquedo funciona, procurando os parafusos e as engrenagens? Então, era eu. Até perdi a conta de quantas vezes montei e desmontei esse carrinho... lembro perfeitamente quão intrigado eu ficava, vendo essas luzinhas piscando e ouvindo o barulho do pequeno motor que o movia. E as pilhas? Como será que as pilhas faziam para que ele funcionasse? Bem, o carrinho fica para doação. Tomara que outra criança possa brincar e, quem sabe, descobrir a magia de entender como ele funciona.

Estas roupas aqui também ficam. Vou precisar de uma quantidade muito maior de roupas do que essas que estou levando, mas se quiser carregar todas terei de fretar um vagão inteiro do trem para me levar embora. Foi uma ótima ideia pedir para minha mãe não estar aqui, ela certamente iria querer que eu levasse tudo, nem que tivessem de ser comprimidas a vácuo para caber na mala. Embora, claro, tenham sido necessários pelo menos quatro dias para convencê-la, junto com os outros, a me esperar na estação.

Acho que é isso. Encontrei muito mais coisas do que achava que seria capaz de caber neste quarto. Olhando pela janela, consigo ver o quintal de casa, as plantas cultivadas com tanto esmero pelos meus pais. Vou sentir saudades de vê-las, de abrir a janela de manhã e sentir a luz invadindo o quarto e me ajudando a acordar. Vou sentir saudades de uma porção de coisas, na verdade.

Agora, é só levar essas caixas para a sala. Depois eles decidem o que será doado e como jogar fora todo o resto que não será reaproveitado. Também preferi não ter muita participação nestas decisões – assim evito o impulso de resgatar um ou outro objeto... me apegar a eles, neste momento, não me ajudaria em nada.

Pego minha mala, olho uma última vez para o quarto. Parece tão vazio sem os objetos que ficavam espalhados por aí, sobre os móveis. Melhor fechar as portas do armário para diminuir um pouco esse ar de desolação e vazio. Já será difícil o bastante para eles sem isso.

Hora de ir, então. O trem partirá daqui a uma hora, melhor não me atrasar.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Da série "Citações..."

"It's time to bring this ship into the shore and throw aways the oars..."


- Can't fight this feeling, Glee Cast version







"É hora de trazer este barco para a costa e jogar fora os remos..."

Da modéstia e sua (in)utilidade

Voltando à ação hoje (thanks, Jay!), e já falando sobre um tema no mínimo polêmico: gente modesta. Você conhece alguém que deveria ter mais modéstia?

Segundo o dicionário Larousse mais próximo, modéstia é a qualidade daquele que é modesto, que pensa a seu respeito ou fala de si mesmo sem orgulho. O problema é que, embora à primeira vista isso seja ótimo (e até encorajado), nem sempre é exatamente útil. De maneira geral, o que percebo é que as pessoas têm uma atitude meio generalizada com relação a esse assunto, sem se darem conta de que há um outro lado da questão - como sempre há, afinal, em todas as questões. Vamos a dois exemplos?

Exemplo 1 - Baseado em fatos reais
Na minha época de faculdade, havia uma garota que era o que se pode dizer, uma pessoa popular. Articulada, inteligente, bem relacionada com os professores, comprometida com o estudo e a futura profissão. Não falava de si mesma com falsa modéstia: era boa no que fazia e tinha consciência disso. Até aí, nada de mal, certo?

Nem tanto. Na verdade, ela causava uma certa impressão nas pessoas que beirava o repúdio (nos casos que eu pude verificar, claro). Os comentários de "ah, essa menina se acha!" eram bastante frequentes. A ela faltaria a bendita modéstia?

Exemplo 2 - Para a cultura pop e além
Tenho assistido ultimamente a alguns seriados. Dentre eles, alguns personagens são bem pouco modestos. O dr. Cal Lightman de "Lie to me" e o dr. Gregory House, de "House M.D.", são alguns deles (e os seriados, altamente recomendados!).
O primeiro é o maior especialista do mundo em detecção de mentiras através de microexpressões faciais e outros sinais corporais. O segundo, um médico brilhante, capaz de diagnósticos impossíveis das mais variadas doenças. Ambos brilhantes, não hesitam em contrariar as opiniões alheias e fazer o seu trabalho - sabem que são bons, e vão em frente.
São personagens bastante carismáticos mas que, em suas vidas pessoas, têm sérios problemas em seus relacionamentos com os demais. Seria, além de outros fatores, por sua falta de modéstia?
Um outro personagem digno de nota é Rachel, de Glee. Cantora do coral da escola, é muitas vezes o trunfo do grupo, por causa de seu talento musical. É bem pouco popular, mesmo entre seus colegas do coral. E por quê? Muitas vezes, por faltar a ela a bendita da modéstia. Rachel sabe que é boa, às vezes melhor que alguns colegas do grupo, e faz questão de brigar por seu
espaço quando necessário, mesmo sendo classificada de "chatinha", "arrogante" e afins...

Isso nos traz a um fato: as pessoas tem tendência a lidar com a modéstia como uma característica a ser possuída, quase sagrada, e os que não a demonstram são ímpios que merecem o desprezo. Certo, certo, muitos anos da influência cristã e sua formulação dos Pecados Capitais (absorvidos, por sua vez, da alquimia e de outras ritualísticas *) colocam aí o Orgulho/Soberba/Vaidade
como algo a ser evitado a todo custo; caso contrário, o que o aguarda, amigo, é o Fogo Eterno!

Todos nós conhecemos alguém que "se acha", que nos irrita por querer se elevar acima dos outros em qualquer situação. Aí temos um ótimo caso onde um pouco de modéstia não faria mal algum, pelo contrário. Entretanto, o reconhecimento JUSTO por sua habilidade, ou trabalho bem feito, ou capacidade de realização também é tão necessário quanto. A devida dosagem de conhecimento sobre suas potencialidades e seus defeitos são, em certo sentido, uma estrada (nem sempre agradável ou fácil, concordo) para a evolução pessoal.

Particularmente, gosto muito dos personagens mencionados e, embora não tenha contato próximo à pessoa mencionada, considero positiva algumas de suas atitudes. A todo tempo incorremos no risco de nos deixar levar a um dos dois extremos: de se tornar um cretino prepotente ou um derrotista desacreditado - e nem sempre sabemos dosar isso direito. Geralmente, os extremos não são bons e não nos fazem bem...

Mas tentar não custa e, no fim das contas, um pouco de prática pode nos tornar mais maduros e saudáveis.

Quem sabe um dia não acertamos o ponto?