Eu estava sozinho em casa. Preferia assim.
Pedi a todos que me deixassem arrumar minhas coisas sozinho. Seria uma boa oportunidade para separar o que realmente me seria útil na viagem e o que poderia ser doado ou jogado fora. Na verdade, eu sabia que o processo de separar todas aquelas roupas e objetos me traria muitos pensamentos e, principalmente, lembranças. E era por causa disso que preferia estar sozinho.
Eu havia passado toda a minha infância naquela cidade. Conhecia a maior parte das pessoas que moravam perto da nossa casa, bem como era conhecido por todos os amigos dos meus pais. Na vizinhança, havia muitas crianças mais ou menos da mesma idade, então mesmo o percurso até a escola era feito na companhia de conhecidos. Evidentemente eu não tinha muitas amizades, mas me virava bem com relação a isso – embora a fama de esquisitão tenha me seguido durante alguns anos.
Engraçado lembrar o quanto isso me incomodava. Não conversava muito com eles, mas mesmo assim essa imagem que tinham de mim me desagradava. Hoje, anos depois, consigo perceber que não fez nenhuma diferença o que pensavam de mim.
Agora eu tenho um objetivo, e essa é mais uma razão para me tornar diferente da maioria. Desde que decidi fazer esta viagem, ouvi repetidas vezes sobre as dificuldades que encontraria pelo caminho, ou mesmo para sair do lugar. Talvez seja porque, por aqui, as pessoas estejam acostumadas a ficar: no mesmo lugar, com as mesmas ideias e os mesmos confortos. É inegável que seria muito mais fácil ficar aqui, onde tudo é conhecido, onde eu poderia ter um futuro absolutamente previsível.
Nesta cidade, após terminar o colégio você pode encontrar um emprego simples, desenvolver atividades simples durante todo o dia, voltar para casa à noite cansado, mas orgulhoso de suas contas pagas com o suor do seu trabalho. Quem sabe construir um patrimônio modesto, casar-se e ter filhos. Simples.
Eu pensava diferente. Queria conhecer lugares, pessoas, fatos... essa curiosidade, essa vontade de explorar sempre foi minha característica mais marcante, desde criança. Sabe aquele menino que adoraria saber como o brinquedo funciona, procurando os parafusos e as engrenagens? Então, era eu. Até perdi a conta de quantas vezes montei e desmontei esse carrinho... lembro perfeitamente quão intrigado eu ficava, vendo essas luzinhas piscando e ouvindo o barulho do pequeno motor que o movia. E as pilhas? Como será que as pilhas faziam para que ele funcionasse? Bem, o carrinho fica para doação. Tomara que outra criança possa brincar e, quem sabe, descobrir a magia de entender como ele funciona.
Estas roupas aqui também ficam. Vou precisar de uma quantidade muito maior de roupas do que essas que estou levando, mas se quiser carregar todas terei de fretar um vagão inteiro do trem para me levar embora. Foi uma ótima ideia pedir para minha mãe não estar aqui, ela certamente iria querer que eu levasse tudo, nem que tivessem de ser comprimidas a vácuo para caber na mala. Embora, claro, tenham sido necessários pelo menos quatro dias para convencê-la, junto com os outros, a me esperar na estação.
Acho que é isso. Encontrei muito mais coisas do que achava que seria capaz de caber neste quarto. Olhando pela janela, consigo ver o quintal de casa, as plantas cultivadas com tanto esmero pelos meus pais. Vou sentir saudades de vê-las, de abrir a janela de manhã e sentir a luz invadindo o quarto e me ajudando a acordar. Vou sentir saudades de uma porção de coisas, na verdade.
Agora, é só levar essas caixas para a sala. Depois eles decidem o que será doado e como jogar fora todo o resto que não será reaproveitado. Também preferi não ter muita participação nestas decisões – assim evito o impulso de resgatar um ou outro objeto... me apegar a eles, neste momento, não me ajudaria em nada.
Pego minha mala, olho uma última vez para o quarto. Parece tão vazio sem os objetos que ficavam espalhados por aí, sobre os móveis. Melhor fechar as portas do armário para diminuir um pouco esse ar de desolação e vazio. Já será difícil o bastante para eles sem isso.
Hora de ir, então. O trem partirá daqui a uma hora, melhor não me atrasar.